O novo código mineral: menos governança pública sobre o aproveitamento dos recursos minerais e mais imprecisão na garantia de direitos aos afetados

Filed in Notícias by on 27 de agosto de 2015 0 Comments

mineradoraEm junho de 2013, o Executivo enviou ao Legislativo o Projeto de Lei 5807/2013 que dispõe sobre a atividade de mineração. Esse projeto pretende substituir o Código Mineral de 1967 atualmente em vigência.

Nos meses de dezembro de 2013 e de abril de 2014, uma comissão especial na Câmara dos deputados – formada majoritariamente por deputados ligados ao setor mineral –apresentou, respectivamente duas versões, bastante similares, do relatório preliminar substitutivo ao Projeto enviado pelo Executivo.

Entenda a proposta do Executivo e as principais mudanças feitas pelos deputados, que irão limitar o controle e planejamento sobre o aproveitamento dos recursos minerais e permitir que os impactos negativos da mineração sigam destituindo os grupos com menor poder político e econômico no país.

O novo código mineral: menos governança pública sobre o aproveitamento dos recursos minerais e mais imprecisão na garantia de direitos aos afetados(1)

(1) Texto elaborado pela equipe da FASE (www.fase.org.br) a partir das análises coletivas dos membros do Comitê em Defesa dos Territórios frente à mineração e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental

A Constituição Federal de 1988 estabelece no art. 176 que as jazidas e demais recursos minerais constituem propriedade distinta do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento e pertencem à União, a qual pode conceder, no interesse nacional (§1, art 176), o direito de pesquisa e explotação, garantido ao concessionário a propriedade do produto da lavra e ao proprietário do solo a participação no seu resultado.

O principal instrumento legal que rege a mineração no Brasil a partir dos princípios estabelecidos pela Constituição é o Decreto-Lei n. 227, de 28 de fevereiro de 1967, comumente chamado de Código da Mineração. Esse decreto pretende ser substituído pela nova proposta apresentada pelo Executivo – e ainda em discussão no Legislativo quando da redação deste artigo – contida no PL 5.807/2013. O novo marco regulatório para a mineração, aí incluído não apenas o PL 5807/13, mas também o PL 1610/96 (2) , prevê regulamentar a prospecção mineral em Terras Indígenas (3).

Dentre as principais mudanças institucionais e regulatórias previstas no Projeto apresentado pelo Executivo destacam-se:
(i) a criação do Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), órgão consultivo de caráter estratégico que deverá assessorar a Presidência da República na formulação de políticas para o setor;
(ii) a criação da Agência Nacional de Mineração (ANM), com atribuições de regular, fiscalizar e gerir as informações do setor mineral;
(iii) a ampliação das atribuições da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais/ CPRM (atual Serviço Geológico do Brasil), empresa pública de pesquisa mineral, que deverá dar mais ênfase às atividades de prospecção e pesquisa, se tornando responsável, com a ANM, de gerir o acervo técnico de dados geológicos que passam a integrar os recursos minerais de titularidade da União; e

(iv) a alteração no regime de outorga dos títulos minerários, propondo a substituição do direito de prioridade (que garantia ao primeiro interessado a obtenção dos direitos de mineração) pelo regime de concessão precedido de licitação nas áreas consideradas relevantes para exploração estratégicas.

Destaca-se ainda no projeto de lei a ampliação das atribuições do poder concedente que terá maior poder discricionário no processo de outorga dos títulos minerários, determinando os requisitos de habilitação (técnica, econômica, jurídica e fiscal) para outorga e podendo estabelecer restrições, limites ou condições para a participação das empresas na concorrência por direitos minerários (BUSTAMANTE et al., 2013).

O Projeto também exclui as pessoas físicas de deterem títulos minerários, reservando direito apenas às pessoas jurídicas e prevê a ampliação das alíquotas para cálculo da Compensação Financeira para Exploração Mineral (as royalties da mineração) que passará a incidir sobre o faturamento bruto das empresas (atualmente o calculo é feito sobre o faturamento líquido, do qual são deduzidos os custos de transporte, incluindo ferrovias e serviços portuários).

A exposição de motivos apresentada pelo Executivo ao Legislativo quando do envio do PL 5.807/2013 deixava claro em seu primeiro parágrafo que as mudanças sugeridas visavam promover o desenvolvimento contínuo e estável dos investimentos e da produção deste segmento, com vistas a ampliar a participação do setor no PIB nacional (4) .

De fato, as mudanças propostas pelo PL vão no sentido de intensificar a exploração mineral do país, de garantir maior governança pública sobre a atividade e aumentar a participação do Estado nos resultados econômicos gerados pela mineração (5) .

Se a proposta elaborada pelo Executivo avança em relação ao marco atual ao melhorar a governança pública no setor mineral – através da previsão de contratos mais detalhados quanto às obrigações das empresas de mineração, da mudança no regime de outorga e da ampliação das atribuições do Estado no que se refere às atividades de prospecção, pesquisa e gestão do acervo técnico de dados sobre os recursos minerais do país – ela ignora e mantém sob invisibilidade o contexto desigual de poder sobre o qual se dá a expansão da atividade mineral e os conflitos ambientais decorrentes.

O Projeto foi apresentado ao Congresso em maio de 2013. No mês de dezembro de 2013 e em abril de 2014, uma comissão especial, responsável por analisar o PL apresentou, respectivamente duas versões, bastante similares, do relatório preliminar substitutivo ao Projeto.

Tanto os textos do Executivo quanto do Legislativo definem o aproveitamento dos recursos minerais como atividade de utilidade pública e de interesse nacional, possibilitando pareceres favoráveis à mineração em caso de contestações judiciais e apontando a visão economicista que rege a política mineral e de desenvolvimento no país.

Em relação ao PL 5.807/2013, os substitutivos apresentados pelo deputado Leonardo Quintão (PMDB/MG), relator da Comissão Especial responsável por analisar o Projeto na Câmara dos deputados, mantém o estímulo à expansão da atividade, mas, apresenta dispositivos que dão mais garantias e segurança jurídica aos titulares dos direitos minerários e diminuem, em relação ao texto do Executivo, à capacidade do Estado de definir quais minerais e áreas devem ser prioritariamente explorados/as.

Uma mudança significativa nesse sentido foi a retirada da chamada pública do processo de concessão que extinguia o regime de prioridade atualmente em vigor. O regime de autorização, que segundo o PL seria previsto apenas para minérios utilizados na construção civil, torna-se, nas propostas do Legislativo, a regra geral para o aproveitamento de todos os minérios.

O regime de licitação, que seria a regra para disciplinar os processos de concessão de minérios, foi mantido, porém de maneira excepcional: somente para os casos definidos pelo Poder Executivo Federal com base em proposta do Conselho Nacional de Política Mineral e para áreas com caracterização geológica já concluída pela Companhia de Pesquisa de Recursos Mineiras/CPRM (empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia responsável pelas atribuições de serviço geológico do Brasil). O substitutivo ainda estabelece, em seu artigo 11, que as áreas detidas pelo CPRM consideradas aptas para licitação sejam disponibilizadas para serem requeridas para pesquisa e lavra caso a licitação não ocorra em 12 meses a partir da data de publicação do novo código.

Outro exemplo de restrição à governança pública dos recursos minerais aparece no artigo 13 que estabelece que a não manifestação do poder concedente frente a um pedido de cessão ou transferência de direitos minerários no decurso de 180 dias incorrerá na sua aprovação tácita.
O projeto do governo extinguia a atividade autônoma de pesquisa mineral, tornando-a atribuição exclusiva do Estado (sob a responsabilidade da CPRM). O substitutivo restabeleceu a atividade de pesquisa mineral autônoma, distinta da lavra, e a possibilidade de que ela possa ser realizada por pessoa física. Além disso, ainda criou mecanismos que possibilitam a comercialização dos direitos minerários a partir da criação de títulos minerários que permite o penhor e a alienação fiduciária de direitos minerários (artigo 7). Desse modo, os direitos minerários passam a ser direitos reais, distintos e independentes do imóvel superficial. Tornam-se oponíveis a terceiros, transferíveis e suscetíveis de serem ofertados como garantia real (DIAS e MENDES, 2013).

São restringidas ainda as condições que o governo propunha para deferimento de outorga e cessão de direitos minerários: manteve-se a necessidade de regularidade fiscal e tributária, mas a inexistência de débitos junto ao poder publico tornou-se restrito aos débitos relativos a áreas objeto do pedido (no texto anterior era necessária a inexistência de quaisquer débitos junto ao poder público para outorga ou cessão dos direitos minerários). Já o artigo 16 assegura indenização prévia e em dinheiro ao titular de direito minerário que tenha tido a concessão ou autorização revogada para realização de obras públicas, priorizando mecanismos que garantam segurança aos investidores em detrimento de regras que beneficiam o interesse público.

Também são propostos mecanismos que claramente visam ampliar as áreas de mineração em detrimento da definição de quaisquer critérios que restrinjam a atividade em função dos seus impactos sociais e ambientais. Um exemplo é a prerrogativa dada ao Conselho Nacional de Política Mineral de estabelecer diretrizes para os Planos Diretores de Estados e municípios de forma a garantir a existência de áreas de mineração “especialmente próximas aos centros urbanos” (artigo 52, XI), numa clara tentativa de neutralizar o surgimento de legislações locais que visem restringir a atividade minerária.

Embora dentre as atribuições do Conselho Nacional de Política Mineral esteja incluída a elaboração de um zoneamento minerário, não há nenhum detalhamento dos critérios que deverão orientá-lo. Se tal proposta tem figurado na pauta dos movimentos sociais que se articulam no Comitê em defesa dos territórios frente à mineração no sentido de criar áreas livres de atividade mineral (seja por abrigar biodiversidade ou atividades de cunho sociocultural e econômico que devem prevalecer à atividade mineraria), o substitutivo mantém imprecisa a proposta de zoneamento e explicita o conceito de áreas livres como áreas que estejam disponíveis para mineração, partindo desse conceito para incluir artigos que viabilizem a expansão da atividade mineral, a exemplo do artigo 11 já citado (que estabelece que as áreas disponíveis/livres que estejam sob o poder do CPRM sejam colocadas a disposição no prazo de 12 meses) e do supracitado artigo 52 (que prevê a inclusão pelo Conselho Nacional de Política Mineral de áreas de  mineração nos planos diretores municipais e estaduais, numa clara inversão de competências administrativas e violação da autonomia dos entes federados).

O substitutivo ainda amplia os poderes do minerador em relação ao detentor da posse ou propriedade do imóvel superficiário (artigos 20, IV; artigo 27, III; artigo 39, V e VI; artigo 41 e artigo 43). É explicitado o direito do titular de usar as águas necessárias para as operações minerais e é inserida a possibilidade de que áreas destinadas à industrialização (que é uma etapa posterior ao beneficiamento dos minérios e, em geral, desenvolvida em local diverso) sejam beneficiadas por servidões. Todas as propriedades que estejam localizadas dentro da área que compreende o direito minerário é presumida como útil a atividade, ainda que não seja necessária a abertura de mina, estando sujeita a servidão mineral. A participação do superficiário no produto da lavra (royalties) é reduzida de 50% para 20% do valor da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral).

Embora o substitutivo tenha incluído, em seu artigo 6, o conceito de comunidade impactada (definida como “conjunto de pessoas que tem seu modo de vida significativamente afetado pela lavra, beneficiamento, escoamento ferroviário e rodoviário da produção mineral, conforme definido em regulamento, pela ANM”) nele não se inclui as populações afetadas pelos minerodutos, já que o texto refere-se apenas a escoamento ferroviário e rodoviário. Tampouco faz menção a comunidades indígenas e quilombolas, que por gozarem de direitos territoriais específicos mereceriam tratamento especial relacionado `a necessidade de serem consultadas, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT para povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário.

Além disso, o conceito não se reflete ao longo do texto em dispositivos que garantam compensação aos impactos causados às comunidades e, sobretudo, participação delas na definição sobre a implementação de um empreendimento mineral e sobre quais as formas social e ambientalmente seguras de extração, beneficiamento e escoamento dos minérios. O único dispositivo proposto tem caráter meramente taxativo. Trata-se do artigo 68, que inclui 10% da CFEM aos municípios não produtores (cortados pelas infra estruturas, pelas operações de embarque e desembarque e onde se localizem as instalações de suporte a atividade e as pilhas de rejeitos). Ainda que represente avanço, na medida em que reconhece o impacto sinérgico da atividade para além do local da lavra, esse dispositivo é insuficiente no sentido de garantir participação das populações afetadas na definição das reparações ambientais, socioculturais e econômicas da atividade e na garantia de prevalecência dos interesses de cunho social sobre a atividade mineradora.

Tampouco há ao longo do texto qualquer dispositivo que preveja ou institua instrumentos de consulta às comunidades impactadas e aos povos e populações tradicionais (cujo território é fundamental para sua sobrevivência física, social, cultural e econômica), previamente ao início do processo de outorga. E tampouco mecanismos que garantam participação na definição das reparações ambientais, socioeconômicas e culturais.

O único momento de consulta estabelecido pelo substitutivo ocorrerá quando os atos normativos da Agência Nacional de Mineração venham a afetar direitos de agentes econômicos e trabalhadores do setor que deverão ser submetidos a consulta pública. (artigo 60), o que reforça a desproporcionalidade, presente em todo texto, entre as garantias dadas aos agentes econômicos em contraposição a imprecisão e ausência de dispositivos que garantam direitos dos atingidos e ameaçados pela mineração.

O artigo109 prevê ainda a anuência da Agência Nacional de Mineração sobre a criação de qualquer atividade ou limitação que tenha potencial de criar impedimento a atividade da mineração (o que seguramente inclui criação de áreas destinadas à tutela de interesses, tais como unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas). Na prática, tal dispositivo, vai no sentido inverso à proteção e garantia dos direitos a terra e território e limitará as políticas de conservação da biodiversidade e o reconhecimento direitos territoriais de populações tradicionais que possuem práticas socioculturais específicas de uso do território, e que tem seu direito originário às terras que ocupam reconhecido pela Constituição.

Antes de propor mecanismos que contribuam para garantir a participação de grupos que freqüentemente são excluídos das tomadas de decisão em função de barreiras políticas, culturais e econômicas, o substitutivo proposto pela comissão tende a favorecer a concentração dos benefícios do desenvolvimento nos grupos econômicos e a manter a concentração dos danos ambientais da mineração sobre os mais destituídos. Como exemplo, temos a proposição de uma série de mecanismos que dão segurança jurídica aos empreendedores, restringem a governança pública dos recursos minerais, limitam a criação de áreas destinadas à proteção de direitos territoriais e da biodiversidade, garantem consulta quando decisões governamentais afetarem negativamente a atividade mineraria, sem que o mesmo seja garantido às comunidades e grupos atingidos.

Por outro lado, critérios para definição de áreas e situações onde os prejuízos econômicos e ambientais gerados pela mineração inviabilizariam sua implementação, direito de consulta das comunidades impactadas, normativas para garantia de saúde ocupacional dos trabalhadores da mineração, não são mencionados na proposta do Executivo ou do Legislativo. Também estão ausentes a criação de mecanismos de regulação que garantam a internalização dos custos socioambientais nos projetos, que evitem uma completa dependência da economia local à atividade mineradora cuja vida é relativamente curta ou que definam a escala e ritmo em que as atividades mineradoras devem ser instaladas e operadas com vistas a garantir o uso racional dos bens minerais e a precaução frente aos potenciais impactos socioambientais da atividade.

De maneira geral, as propostas reafirmam a matriz desenvolvimentista orientada para o uso intensivo da terra e dos recursos naturais e buscam viabilizar a expansão das fronteiras de acumulação, a partir da criação de condições financeiras (via financiamento público), normativas (via estabelecimento de mecanismos que garantam maior segurança jurídica aos empreendedores) e políticas, tomando para si a tarefa de redefinir as condições em que determinados territórios estarão sob vigência ou não das regras mercantis.

Ainda que isso possa resultar na manutenção e até na ampliação dos níveis de exclusão social de determinados setores sociais (a exemplo das populações que serão impossibilitadas, com a aprovação do artigo 109, de acessar direitos territoriais fundamentais para garantia de suas estratégias socioprodutivas) em manifesta contradição com a retórica que recorrentemente justifica o avanço da mineração.

 

(2) O PL 1610/96 proposto pelo deputado Romero Jucá/PMDB-Roraima e sobre o qual outros PLs que tratam da matéria estão apensados.
(3) Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, a mineração em faixa de fronteira e em terras indígenas deve ter tratamento especial e regulamentação específica. Embora a mineração em áreas de fronteiras tenha sido regulamentada em 1979, a regulamentação da atividade em terras indígenas ainda não foi aprovada pelo Congresso
(4) Confere Exposição de Motivos nº 25/2013 MME AGU MF MP. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/EMI/2013/25-MME%20AGU%20MF%20MP.htm
(5) Ao longo dos anos 1990, a maior parte dos países latino-americanos levou a cabo profundas reformas nos marcos que regulavam a atividade mineral com objetivo de promover e garantir a expansão dessas atividades e, em maior ou menor grau, assegurar maior captura da renda mineral por parte do Estado (SVAMPA e ANTONELLI, 2009).

 

 

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